2006/04/06

AMIGOS

Os amigos são aqueles pedaços dos outros que se projectam nas nossas vidas e se misturam com elas sendo parte integrante de tudo isto que por aqui somos e fazemos.

Fazer amigos é fácil quando estamos disponíveis para nos tornarmos um fragmento dos outros sem oportunismos e formas egoístas de coexistir em sociedade.

Fazer amigos é difícil quando o egocentrismo exacerbado nos transforma em seres penosamente solitários.

Fazer amigos é fácil quando temos capacidade de nos tornar comparsas das realidades alheias.

Fazer amigos é difícil sempre que nos julgamos penosamente superiores e não conseguimos ver para além da parte de dentro das nossas ambições.

Fazer amigos é fácil quando crescemos dentro de nós próprios e conseguimos projectar essa grandiosidade para o outros de uma forma desinteressada e solidária.

Fazer amigos é difícil quando, vitimados pela nossa pequenez, não conseguimos sair de nós próprios e entregarmo-nos despreocupadamente a alguém.

Fazer amigos é fácil quando somos cúmplices de vontade e liberdades que sendo alheias acabam por ser nossas.

Fazer amigos é difícil quando estamos sempre prontos a seguir só o nosso egoísmo e nos esquecemos que os outros também podem estar lá e ser vítimas disso.

Fazer amigos é fácil quando mantemos sempre a mesma alegria e o mesmo prazer de dizer “Olá!”.

Fazer amigos é difícil quando até nos chegamos a ignorar a nós próprios.

Fazer amigos é fácil quando não queremos ser donos de ninguém e não nos sentirmos coagidos a seguir uma ideia mesmo sem a querer.

Fazer amigos é difícil quando nos são impostas atitudes movidas por circunstâncias pontuais e nos sentimos obrigados a representar um papel de uma cena num palco estranho ao nosso ser.

Fazer amigos é fácil quando queremos repartir o que é nosso e não exigimos que dividam connosco o que não nos pertence.

Fazer amigos é difícil quando desejamos ardentemente que os outros não tenham e vivemos envoltos na nuvem invejosa que nos devora.

Os amigos são um dos eixos por onde gira uma parte importante das nossas vidas e que, sem darmos por isso, nos alheamos frequentemente da sua importância.

2006/03/10

VIOLÊNCIA

A violência é-nos servida diariamente em doses excessivas com carácter de banalidade. O comportamento humano aparece recheado de soluções escandalosamente violentas, quando se trata de impor uma ideia, um modelo, um caminho. Apressadamente se começam a atribuir culpas na tentativa de desresponsabilizar os verdadeiros prevaricadores e os seus mentores. Geralmente surgem explicações mais ou menos cómodas. Os jogos de computador, os filmes, a televisão são frequentemente os bodes expiatórios para justificar comportamentos violentos inexplicáveis. Ficam de fora os motivos menos cómodos como os valores sociais ou a dignidade e o respeito pelo ser humano que teimam em ficar esquecidos na relação quotidiana.

Será que a violência dos jogos de computador, da televisão e do cinema são os inspiradores da violência quotidiana ou acontecerá exactamente o contrário?

Serão esses os responsáveis pela violência na relação dos pais para com os filhos e dos filhos para com os pais ou é aqui que vão buscar a inspiração?

A violência dos automobilistas, dos peões, dos jovens, dos idosos, dos homens, das mulheres, dos políticos, dos eleitores será o reflexo daquilo que nos é transmitido pelos “media” ou acontecerá exactamente o contrário?

Surgem ainda circunstâncias em que a “violência é urgente”. Acontece frequentemente isso em alguns órgãos de comunicação social. Todos se lembram do “arrastão” que afinal não passou de um “inventão” de alguns para, de uma forma talvez pouco inocente, alarmar-nos e tentar despoletar atitudes racistas e xenófobas.

Há a violência real, latente em algumas franjas da população. Todos nos alarmámos com os acontecimentos ocorridos em França quando milhares de jovens saíram para a rua e praticaram a destruição sem motivos aparentes, sem se moverem por ideias políticas ou fanatismos religiosos. É a violência oculta dos excluídos da sociedade que rebenta com o mais pequeno pretexto ou até sem pretexto nenhum.

Frequentemente atribui-se também as culpas à escola por não a conseguir evitar ou controlar, quando se trata de violência juvenil. É sempre cómodo procurarmos as causas dos nossos fracassos em motivos dos quais nos consideramos alheios. É uma atitude covarde e traiçoeira mas fácil. A escola, nos dias de hoje, mais do que nunca, não consegue ser mais do que um reflexo da sociedade em que se insere. O ambiente escolar é sempre feito pelos que o frequentam e esses não podem ser uma coisa dentro da escola e outra fora. A escola não pode construir o que está constantemente a ser destruído pela sociedade. Os valores e os princípios podem ser desenvolvidos aí mas têm de ser adquiridos fora dela. De famílias disfuncionais onde os interesses egoístas e as carreiras se sobrepõem a tudo, onde os afectos são deixados a cargo de pessoas pagas para isso, onde as ausências físicas e afectivas são frequentes, não poderão sair seres solidários e pacíficos.

Hoje discute-se e fala-se da violência como um problema, o que é pertinente.

Será que se equaciona esta questão da forma mais correcta e honesta?

2006/01/02

VALORES

Vivemos hoje numa sociedade onde frequentemente se diz que há uma “crise de valores”. A palavra “crise” aparece associada a quase tudo e não é de estranhar que na depressão colectiva em que vivemos apareça também associada a este assunto. É certo que conceitos como lealdade, honra, fidelidade, verdade… se tornaram simples devaneios imaginários atribuídos a retrógrados e desactualizados da sociedade. Assistimos a um deflagrar de atitudes e posturas que nos levam a desacreditar na existência de valores na sociedade. O exemplo de seriedade e verdade que nos deviam dar os nossos governantes não existe e quem é hoje bom pode facilmente ser o diabo amanhã. Não precisa de fazer grande coisa para isso bastando somente uma ligeira mudança do contexto de quem faz o juízo. A conveniência e o egoísmo presidem a todos os julgamentos e, se por acaso alguém quiser fugir a esta urdidura, facilmente é marginalizado e rotulado de herege social perante os conceitos vigentes. Alinhar pelo globalmente aceite, mesmo que seja a coisa mais abjecta, torna-se urgente a cada momento para quem faz da vida um correr desenfreado em busca de protagonismo e poder, mesmo que seja ilusório e enganador. Numa envolvência onde tudo isto se torna apelativo pela embalagem embelezadora em que nos é servido, facilmente nos tornamos permeáveis e moldáveis a todos estes conceitos. Os valores volvem-se para um plano obscuro onde aparece radiante uma postura hipócrita e falaciosa. O caminho seguido, muitas vezes sem regresso, leva-nos a um vazio pois toda a nossa existência como seres humanos necessita de rumos e princípios que a orientem. Surge assim o nosso estado de infelicidade colectiva alternando, de uma forma doentia, entre a euforia e o desalento (lembram-se da Expo, do europeu de futebol, das bandeiras… não lembram?). É típico de seres sem caminhos estes sintomas de esquizofrenia colectiva. Desculpamo-nos com a nossa carga genética, com a situação económica, com o défice… não acreditando que para além disso existe vida e talvez o mais importante esteja bem longe de todas essas desculpas. A construção do nosso quotidiano também depende de nós próprios, da nossa dignidade, dos nossos valores. É aí o centro da nossa existência e quando ele não existe navegamos à deriva e à mercê de ventos e tempestades que nos levem para onde for mais conveniente a nossa destruição como seres racionais e inteligentes. Transformamo-nos numa espécie moldável a vontades e (des)propósitos alheios ilusoriamente independentes. Mas como que a acordar de um pesadelo, alguns de nós conseguimos dar um abanão na nossa existência e encontrarmo-nos connosco, num momento da vida que passará a ser então o nosso grande momento. Será que não haverá outra solução para além da resignação perante a fatalidade?

2005/11/01

RISO

O riso é, por definição, a parte exterior da nossa alegria do nosso bom humor, de parte da nossa felicidade. Consideram-nos um país de tristes e estamos, segundo estudos recentes, na cauda da Europa no que diz respeito aos índices de felicidade. Mesmo assim ainda rimos e, a julgar pelos programas televisivos e pela publicidade que apela ao riso, ainda tentamos resistir a este desígnio fatalista. Parece que é nos momentos de maior desespero que coisas destas são populares. Talvez seja a necessidade de equilíbrio e estabilidade emocional que se procura. É certo que não encontramos muitos motivos para rir mas, mesmo assim, lá vamos esboçando sorrisos ou dando gargalhadas pelos mais variados motivos.
Quando rimos podemos mostrar os mais diferentes sentimentos e as mais diversas facetas da nossa personalidade. Certamente rimos para mostrar o nosso júbilo mas também o podemos associar a outras circunstâncias.
É o riso de desprezo que muitas vezes se torna na única arma para demonstrar a revolta.
É o riso de indiferença que serve quando já não há nada a fazer e o alheamento é total.
É o riso idiota por tudo e por nada que acompanha cada gesto e indicia a incapacidade para demonstrar sentimentos.
É o riso de circunstância que serve tudo e não vale nada.
É o riso sadio e inteligente que estimula a nossa criatividade e desenvolve o nosso espírito crítico.
Pena é que sejamos quase sempre inflamados para o riso por motivos fáceis e pouco sensatos. Os nossos humoristas de serviço fogem frequentemente para trilhos fáceis porque lhes falta a criatividade e a sensatez de conseguir provocar a gargalhada sem recorrer a brejeirices de gosto duvidoso ou a receitas gastas e confrangedoras.
É conhecida a nossa capacidade para criar humor a propósito de tudo ou de nada. Qualquer acontecimento ou qualquer atitude pessoal mais sonante provoca um chorrilho de anedotas que facilmente circula como que divulgadas pela mais prestigiada agência de publicidade. Este sentido de humor latente aproveita o mais pequeno motivo para exteriorizar o sentido crítico e a censura através do riso. No entanto temos muito pouca capacidade para nos rirmos de nós próprios. Quando nos toca a nós, reagimos de forma agressiva e hostil. Talvez isso demonstre a causa de alguma inércia como povo pois temos sempre solução para tudo menos para os nossos próprios problemas. Somos peritos a olhar para os outros mas pouco versados a ver-nos a nós próprios.
Talvez o tom deste texto não seja o mais adequado ao tema. Mas vá lá… Façam um esforço… Esbocem pelo menos um sorriso.

2005/09/16

PEQUENEZ

Os pequeninos circulam por aí imaginando-se enormes no seu universo limitado. A pequenez não escolhe idade, sexo, raça ou condição social.
Os pequeninos cirandam por entre todos, pisando quem se atravessa no seu caminho.
Os pequeninos põe-se em bicos de pé para serem vistos.
Os pequeninos passam à frente.
Os pequeninos ultrapassam pela direita, pela esquerda e, se necessário, por cima ou por baixo.
Os pequeninos enchem o peito de arrogância feroz.
Os pequeninos vestem a pele dos gigantes que não conseguem ser, julgando encontrar aí refúgio para a sua pequenez.
Os pequeninos são afáveis mas prontos a atacar pelas costas aqueles que lhes fazem frente.
Os pequeninos são traidores e viram a sua cabeça para onde lhes dá mais proveito.
Os pequeninos são limitados, analfabetos sociais, eunucos da vida.
Os pequeninos são cobardes e fogem sempre que não conseguem ganhar.
Os pequeninos tremem de medo quando alguém lhes faz frente.
Os pequeninos não têm ideias próprias. Limitam-se a repetir aquilo que já foi dito e aceite.
Os pequeninos não têm palavra. Moldam-na consoante a situação.
Os pequeninos não têm amigos e adaptam as suas relações aos seus interesses.
Os pequeninos são mentirosos porque só assim conseguem esconder a sua ignorância.
Os pequeninos são lacaios e correm quando estão perante um superior dando a entender que trabalham muito.
Os pequeninos estão sempre disponíveis para tudo não conhecendo a diferença entre dignidade e baixeza.
Os pequeninos, quando têm um poder pequenino, são horríveis e cruéis e não conseguem equacionar nada para fora dos limites deles próprios.
Os pequeninos têm uma cabeça pequenina e por isso são limitados na capacidade de pensar não conseguindo sair do seu egocentrismo.
Os pequeninos são egoístas e arrastam tudo neste turbilhão de interesses pessoais.
Os pequeninos acham-se superiores pois desconhecem o valor dos outros.
Os pequeninos nunca conheceram a inocência das crianças porque sempre sofreram de pequenez.
Os pequeninos são traiçoeiros e perante a realidade da sua traição fogem e escondem-se para não enfrentarem a realidade dos seus actos.
Os pequeninos não ligam a meios para atingir fins.
Os pequeninos só pensam no que se faz e não percebem que o “como se faz” é, por vezes, mais importante.
Os pequeninos desenrascam-se “o que é preciso é fazer e não interessa quem se leva à frente”.
A pequenez revela-se por aí, a cada momento e em qualquer lugar, no lado mais pequenino deste mundo em que vivemos.

2005/08/21

LAZER

Na quietude de uma tarde de Verão, algures entre uma praia e um hotel, numa esplanada mais ou menos silenciosa, desfrutamos o prazer de não ter nada para fazer a não ser existir. É este o conceito de lazer a que todos temos direito mas que nos é negado por mentalidades retrógradas e doentias ou por injustiças sociais que nos devoram. Mas não é um conceito rígido e fixo que nos deve prender e amordaçar. O conceito de lazer liga-se sobretudo à capacidade de usufruirmos da nossa liberdade pessoal.
A dignidade do trabalho também se deve medir pela capacidade de saborear o lazer que nos faculta. O trabalho, medida absoluta de dignidade para alguns, não o pode ser só por si. Aquilo que nos proporciona, a respeitabilidade que nos confere, a decência que nos imprime é também a capacidade de nos aproveitarmos dele para nós próprios. Ainda está um pouco na moda o orgulho de ser “workaholic”. Passeia-se esta espécie diante de nós, constantemente ao telemóvel, correndo de um lado para o outro, fazendo crer que tudo não passa de uma questão de velocidade. Duvido sinceramente da eficácia de tanta urgência sem tempo para pensar, amadurecer ideias, enriquecer conceitos. Para esses sugeria um tratamento especial ou talvez uma ida voluntária aos “workaholics anónimos”.
As férias e os fins de semana são uma conquista recente das sociedades civicamente avançadas. O “direito à preguiça” é um dos principais triunfos sociais da segunda metade do século XX. Há ainda quem tente obstruí-lo, menosprezá-lo, dando a entender que é um favor que se presta a quem o goza. É um direito e mais do que isso um meio de nos apropriarmos de nós próprios, quando temos de suportar um quotidiano carregado de deveres e obsessões desmesuradas que nos transforma em autómatos durante a maior parte do tempo que vivemos. O lazer é o momento de reinventarmos as nossas vidas, de vivermos a nossa liberdade e a nossa capacidade de sermos donos do nosso destino.
Por vezes o conceito de lazer torna-se numa nova dependência quando temos obrigatoriamente de fazer dele algo de espectacular para depois podermos exibir orgulhosamente perante os outros, narrando feitos de um período efémero e vazio. Impõe-se deste modo sair, fugir, viajar, ir para longe… Quanto mais espectacular for o feito mais “admiração e inveja vai despertar”. Aparecem assim os escravos do lazer, aqueles para quem estes períodos não passam do prolongar da servidão que têm perante si próprios. Não conhecem a liberdade e são meras cópias de modelos fictícios que aparem em revistas e séries televisivas de intenções duvidosas. Vivem no caos da imitação e na insatisfação constante de não saberem usufruir dos momentos da vida repetindo modelos gastos e obsoletos. Sim, “porque a vida é um momento…”
Há ainda outros para quem o lazer é um modo de vida. São os que nada fazem e nunca trabalharam para merecer esse descanso. Confundem lazer com parasitagem. São os inúteis da sociedade que teimam em viver à custa dos outros. Para estes o lazer não existe porque se transformou em futilidade e dependência. Não conhecem mais nada para além disto e por isso são vazios, pouco criativos e não passam de seres vegetativos precoces.
O lazer deve ser a principal razão de existência do nosso quotidiano.
O lazer é a razão do trabalho.

2005/07/08

ARROGÂNCIA

A arrogância anda à solta. Cruza-se descaradamente connosco na rua. dá-se uma recompensa a quem não a encontrar. Parece inofensiva mas provoca-
-nos, perturba-nos, entristece-nos, revolta-nos…

É o automobilista que nos ultrapassa ou que teima em não respeitar o peão, como que tentando mostrar a sua virilidade de macho falhado.
É o peão que passa ao lado da passadeira para mostrar que todas as regras não foram feitas para ele.
É o funcionário da repartição pública que, munido do seu pequeno poder, arremessa-
-nos com ela para se impor.
É o utente desse serviço que, servindo-se de manhas e engenharias duvidosas, tenta sobrepor-se a tudo como se auferisse de um estatuto especial só porque se julga poderoso.
É o jovem que passa por nós e a exibe como se de um orgulho se tratasse.
É o velho que a usa como se esse direito lhe fosse conferido pela idade.
É o esperto que passa à nossa frente na fila fazendo crer que não consegue ver para além da parte interior da sua cabeça.
É o polícia que quando já não consegue mostrar a sua autoridade nos fuzila com ela, tentando fazer valer o seu domínio.
É o professor que a utiliza para tentar encapotar a sua incapacidade.
É o aluno que a procura quando se sente ignorante.
É o patrão que, quando não consegue convencer ninguém, a aproveita para se impor, ignorando que isso desmotiva.
É o empregado que já não consegue fazer mais nada e a usa como se de um argumento válido se tratasse.
É o político que falha na convicção e a veste para ultrapassar as suas limitações.
É o árbitro, o atleta e o público de um jogo qualquer que teimam em fazer daquilo um caso de vida ou de morte.
É o médico que se serve da nossa fragilidade para nos reduzir a um simples objecto de estatística.
É a do doente que, servindo-se da sua debilidade, a utiliza para dominar todos os que se encontram à sua volta.
É a do juiz que confunde o poder que a lei lhe dá com o poder da lei que o obriga.
É a do arguido que movido da sua astúcia e agilidade tenta iludir aquilo que é óbvio.

A arrogância não serve ninguém mas serve para muitos como arma de arremesso que usam sem descriminar em quem acertam. Afecta todos incitando-nos à sedição contra os que se servem dela.
A arrogância é a arma dos “serial-killers” da sociedade do “vale tudo”.
A arrogância é a arma dos fracos.

2005/06/28

AMOR

O amor é foragido, proibido por decreto-lei e encontra-se refugiado algures num local indeterminado.
O amor mostra-se perigoso quando invade alguém e, segundo se diz, consegue mutilar mesmo o mais temido e corajoso guerreiro.
O amor caiu em desuso e por isso pode ser perigoso para todos.
O amor está fora de validade e julga-se que, ao entrar na mente de alguém, provoca danos irreparáveis. Não há antídoto para o amor e por isso qualquer um está à sua mercê.
O amor é o mais terrível inimigo da sensibilidade e torna o ser humano vulnerável às injustiças sociais e pode até revoltá-lo.
O amor, quando se espalha, pode provocar crises que elevam a auto-estima e, por isso, fazer as pessoas mais humanas.
O amor faz sorrir, dá prazer e é por isso perigoso, porque são hábitos inapropriados a uma sociedade onde a rentabilidade não pode ser ameaçada.
O amor pode fazer com que as pessoas deixem de ser máquinas e assim deixem também de poderem ser manobradas e controladas.
O amor cega as pessoas ao ponto de as tornar naturais.
O amor cerca os pensamentos e, quando ataca duas pessoas ao mesmo tempo, pode reduzi-las a meros seres medíocres de sentidos absurdos e provocar-lhes destinos comuns o que é arriscado pois pode arruinar as suas carreiras.
O amor faz sofrer, mata a vontade de resignação e, por isso, deve ser exterminado o mais rapidamente possível.
O amor espalha-se e é contagioso.

Pede-se a quem o encontrar que se dirija ao posto de autoridade mais próximo para que seja localizado e erradicado.

2005/06/09

CIDADE

A cidade é o encontro de todas as ambições, aspirações, desilusões…
A cidade é bonita: às vezes por dentro, às vezes por fora.
A cidade é bonita de dia.
A cidade é bonita de noite.
Mas a quando a cidade ainda é mais bela, é na Primavera, ao princípio da noite. É nessa altura que se mostra no seu auge de local onde a vida consegue flutuar. É nessa altura, quando os stressados do dia já se foram embora e quando os stressados da noite ainda não chegaram, que ela se mostra elegante e distinta. Nesse momento, sobram na cidade os despreocupados e é com eles que ela realmente se sente bem. É bom poder circular na rua e andar mesmo nos lugares mais inabituais sem a inquietação de olhar preocupadamente em todas as direcções. Ao iniciar a noite, podemos ser donos da cidade e recordar-lhe que ela nos pertence e que, apesar de nos zangarmos com ela noutras alturas, não é com ela que no zangamos mas com aqueles que abusivamente a usam e a tornam insuportável. Para possuir o direito de cidadania deveria ser possível medir a capacidade que cada um tem de a amar desinteressadamente. Assim a cidade viveria mais alegre e teria capacidade para nos sorrir a qualquer hora. Não, não seria um sorriso de circunstância, mas um sorriso de amor que é o melhor e o mais sincero dos sorrisos. Olhar-nos-ia nos olhos como o faz ao anoitecer e segredar-nos-ia: “Que bom é estares aqui a dar-me vida!”. Mas a cidade não vive neste conforto constante.
Tem donos que não a sabem zelar e a tratam como um meio para atingir fins que ninguém compreende quais são.
Tem usurpadores que a ocupam diariamente e lhe roubam o brilho e a lucidez com as suas atitudes desprezíveis.
Tem intrusos que a assaltam durante o dia, durante a noite e a tornam irrespirável para a idoneidade civilizada de alguém.
Tem abutres que lhe sugam o sangue e a tornam por vezes desumana.
Tem seres com interesses obscuros, que lhe fazem plásticas, movidos por interesses pessoais e lhe estragam completamente as formas e os contornos sensuais.
Tem imundos que a sujam, com o lixo que atiram para o chão e, pior ainda, com aquele que trazem dentro da cabeça.
Tem pessoas que julgam possuí-la e a desfiguram com ornamentos de gosto duvidoso, gosto esse que até é espelhado na sua própria imagem de seres que deambulam pela vida com o único sentido de ostentar a imaturidade estética que encerram.
Ao fim da tarde, quando a noite começa a tomar conta de tudo, a cidade torna-se bonita para os seus amantes
e sorri-nos segredando-nos ao ouvido que nos pertence
e jura-nos amor eterno prometendo que há-de voltar sempre bonita a essa hora
e encosta ternamente a sua cabeça nos nossos ombros dizendo-nos em cada dia num sussurro: “até amanhã”.

PRAZER

À ditadura do sofrimento imposta às gerações passadas, assistimos hoje à ditadura do prazer. Procura-se desalmadamente um prazer total e ideal caindo no esquecimento o usufruto dos pequenos prazeres quotidianos. A busca desenfreada de um prazer total gera frustrações e revoltas que provocam um desprazer e um sofrimento angustiante. É nesta contradição que vivem as gerações actuais levando à sua frente valores e princípios que são espezinhados em nome dela. O esquecimento de um viver reconfortante e solidário e um centrar de tudo no “eu” provoca um conflito existencial do qual é difícil sair. É neste contexto que surgem, cada vez com maior intensidade, os distúrbios e disfunções psíquicas. O ser humano tem tendência a equilibrar as suas emoções e afectos e com tal perca de auto-estima provocada pelo desprazer sentido, surge um conflito pessoal do qual só é possível sair com a ajuda de terceiros (ajuda “divina” ou médica). O ser humano perde-se nele próprio e, sem rumo, vagueia pela vida em busca de quimeras impossíveis. A desilusão e a tristeza tornam-se assim mais usuais e o prazer ambicionado aparece, deste modo, mais distante.
Surge assim um desejo mórbido pela desgraça alheia como que tratando-se de uma necessidade oculta de exorcizar os fantasmas da frustração pessoal. O mundo explora muito bem e de uma forma lucrativa todo esse desejo, ostentando pornograficamente até à exaustão todas as desgraças mais íntimas do ser humano. Parece que quanto maior for a desgraça maior é a catarse conseguida. O mundo vive uma orgia de prazer macabro quando tem oportunidade de tomar conhecimento de uma desgraça planetária. Lembremo-nos da forma orgástica como se comenta um atentado ou a ofensiva de um exército. É a esquizofrenia colectiva no seu grau mais puro e cruel.
No sentido aparentemente oposto mas complementar desta forma de estar, aparece o voyerismo pela aparente felicidade vendida em doses gigantescas pelos media. Apesar da mentira que todos percebem que está a ser transmitida, o seu consumo torna-se num deboche saboreado pelas pessoas. Transmitem-se para essas mentiras a verdades cruéis que assaltam o quotidiano como que refrescando com lume a ardente realidade em que se vive. Os prazeres aparecem projectados em mentiras e a sua consistência tem um prazo de validade terrivelmente limitado.
A ditadura do prazer acaba por tornar-se numa nova ditadura do sofrimento. É nesta contradição que vamos vivendo.

MEDO

O medo espreita constantemente e transforma-nos em autómatos da sua vontade.
O medo é a mordaça da nossa liberdade.
É o medo da insegurança que nos limita a liberdade de movimentos quando queremos caminhar errantemente pela cidade.
É o medo do que comemos que nos obriga a abdicar dos sabores mais apetecíveis.
É o medo dos nossos instintos que nos podem fazer perder tudo para sempre.
É o medo da nossa revolta que nos leva aceitar injustiças e arbitrariedades.
É o medo de ter medo que provoca a nossa inércia e a nossa resignação.
É o medo de não ter medo e fazer com que a imagem invencível se desmorone.
É o medo da mudança que nos acomoda a situações indesejadas.
É o medo dos terroristas, dos pacifistas que nos fazem abandonar princípios e causas.
É o medo da velhice, da juventude, da morte, da vida…
É o medo como forma de negócio para nos proteger dos medos.
É o medo do escuro, do claro, do dia, da noite, da água, do fogo…
É o medo da guerra, da paz… de tudo…
O medo instituiu-se como um sinal de avanço e desenvolvimento. Uma sociedade sem medo será, talvez, perante os olhares de alguns, uma sociedade ignorante e sem interesse. Os tabus tornaram-se familiares e são assimilados como algo irreversível. A ausência de uma vontade aguerrida que ultrapasse tudo isto invadiu o nosso quotidiano e transformou-nos em seres sem causas e sem princípios. Uma sociedade com medos permite tudo em nome da placitude que é não os ter. São permitidas arbitrariedades, injustiças por parte dos que em nome de princípios edificantes criam sempre novos medos. Somos educados no sentido do medo. As doenças, a droga, o álcool, os acidentes rodoviários, a alimentação são medos universalmente aceites e, aproveitados por interesses sombrios, ofuscam por completo os nossos desejos e a nossa condição humana.
Será que alguém se alimenta dos nossos medos?

VELHOS

Os velhos passeiam-se pela vida vendo desprezado todo o seu saber acumulado.
Os velhos cruzam-se connosco e alheamo-nos da riqueza da sua existência.
Os velhos não são novos, bonitos, imbecis e por isso passaram de moda.
Os velhos vêem as suas referências serem destruídas em nome de um progresso que tarda a chegar. (Deixem-lhes ao menos um cantinho no jardim que lhes recorde a infância e a tareia que levaram por sujar o seu fato domingueiro!!!)
Os velhos perturbam-nos pois fazem-nos revelar a nossa crueldade.
Os velhos são enfiados em locais mais ou menos luxuosos onde têm tudo menos aquilo que precisam.
Os velhos são calados, impedidos de nos fazer conhecer o nosso passado, o nosso presente.
Os velhos estão cansados e incrédulos pois é isso que favorece a nossa ignorância.
Os velhos olham o céu e não conseguem resistir à alegria de o sentir igual.
Os velhos são velhos e por isso vêem de perto aquilo que nos parece longe.
Os velhos são tolerados e entretidos com caridades burlescas que os deprimem.
Os velhos são ridículos quando os tentamos ou quando se tentam transformar em novos.
Os velhos são seres assexuados pois ninguém se rala com a sua sexualidade.
Os velhos não têm saída pois todos os caminhos se lhes fecham.
Os velhos são o nosso futuro mas recusamos vê-los como isso.
Os velhos são tristes pois ninguém se alegra com a nossa intolerância.
Os velhos repousam espalhados ao sol à espera de algo que nunca vai chegar.
Os velhos são desperdiçados.
Os velhos são traídos.
Os velhos são desprezados.
Os velhos são os velhos.
Os velhos somos nós.